Jordan Peterson mostra que Brasil da direita virou oficial – 29/06/2024 – Ilustríssima

[RESUMO] Ícone da direita, o psicólogo canadense Jordan Peterson já vendeu milhões de livros e arrasta multidões para vê-lo mundo afora. Em passagem por São Paulo na semana passada, atraiu políticos, milionários e celebridades da internet para ouvi-lo falar de Caim, Abel e sacrifício. Neste relato, autor descreve como a movimentada noite de palestra, embalada por ingressos salgados, Bach, uísque e apertos de mão a R$ 1.300, espelhou a nova cara da direita e o futuro político do Brasil.

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“E se alguém jogasse uma bomba aqui? Com certeza, a direita brasileira seria destruída para sempre.” Sim, foi isso o que se ouviu na fila de espera, gigantesca, na frente do Espaço Unimed, em São Paulo, no último dia 18, enquanto cerca de 4.000 pessoas se preparavam para assistir à palestra do doutor Jordan Peterson, provavelmente o intelectual público mais pentelho do planeta.

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“Pentelho? Como assim? Esses esquerdistas são foda. Ficam preocupados com essa história da Nubank, da Erika Hilton. Estamos pouco nos lixando com isso. Você não entende nada: Jordan salvou a minha vida”, poderia responder algum fã ali presente. Naquele lugar, a voz do povo era de fato a voz de Deus.

Salvar é uma palavra meio forte, mas é a exata sensação que se respirava quando finalmente os portões do local se abriram e os que estavam ali há mais de uma hora começaram a entrar, prontos para enfim receber, via inspiração divina, o que o bom doutor tinha a dizer.

Porque Jordan Peterson é, de fato, o bom doutor. E não só isso: ele é o bom doutor que, graças ao seu talento, se tornou milionário. Com seus livros (“Mapas do Significado”, “12 Regras para a Vida”, “Além da Ordem”) vendeu mais de 10 milhões de exemplares. O próximo, “We who Wrestle with God” (“Nós que Lutamos contra Deus”), está previsto para novembro.

Mas havia outra coisa que se respirava ali na entrada, antes de ir ao palco, onde o público, que pagou no mínimo R$ 600 por ingresso, se espalhava em diferentes setores, divididos por fitas de cores que iam do azul ao preto, passando pelo amarelo. O que se respirava ali, além do tesão por uma bomba que pudesse destruir todos os presentes, era “a nostalgia do gulag”.

A “nostalgia do gulag” é o seguinte: antes, durante e depois de Olavo de Carvalho, toda a direita brasileira —que simplesmente idolatra Jordan Peterson porque ele combate como poucos a política identitária, o comunismo e o ateísmo— sempre sonhou ir para uma Sibéria particular. No entanto, ela não tinha dinheiro para isso. Diferente da esquerda burguesa, a direita é pobre.

Então, para ter a Sibéria particular, a direita seguiu essa estratégia: acusou todo mundo de persegui-la. Universidades, imprensa, o Congresso, o Palácio do Planalto, mais recentemente o Supremo Tribunal Federal. Faça sua escolha. Com isso, conquistou um público que, humilhado por uma casta que não para de aumentar a morte e os impostos, resolveu se revoltar com protestos. Como consequência, Dilma Rousseff foi expelida do poder. Ainda assim, a direita continuava miserável, no bolso e na cabeça.

A solução foi apelar para as redes sociais e vender cursos. Mais do que isso: seus integrantes tornaram-se “influenciadores”, os infames “coaches de vida”. Foi quando o dinheiro passou a cair como maná. A esquerda alega que isso faz parte de uma conspiração internacional, mas também não hesitou em imitar sua competidora. Agora com a grana correndo a solta, a direita poderia ter o seu gulag. A diferença é que esse lugar era nada mais, nada menos que o próprio Brasil.

Com a pandemia, a direita brasileira entrou em sua fase mais recente: a de ser o contraponto à cultura oficial. Teve até um levante de velhinhos no famoso 8 de janeiro para marcar essa passagem. Mesmo com a morte de Olavo de Carvalho e a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, ela não parou de crescer. Tornou-se, de fato, um país paralelo. Não à toa, a empresa que mais simboliza esse movimento —e é a encarnação suprema da “nostalgia do gulag”— se chama justamente Brasil Paralelo.

E também não por acaso, a empresa promoveu a visita de Jordan Peterson, junto com a produtora oficial do evento, o grupo gaúcho Fronteiras do Pensamento. O Brasil Paralelo, contudo, fez mais do que divulgar a vinda do bom doutor. Praticamente o sequestrou para seus próprios interesses.

O problema é que Jordan Peterson gostou disso, sofrendo da habitual síndrome de Estocolmo, ao tirar fotos festivas com gente do naipe de Eduardo Bolsonaro, em encontro intermediado por ninguém menos que o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP).

Se você, leitor, estivesse no Espaço Unimed no dia da palestra, iria respirar essa atmosfera nostálgica da direita. Mas, se estivesse nos camarotes, e não no gargarejo do palco, também iria respirar o cheiro salgado dos pastéis e das fritas (R$ 35 a porção), o odor doce dos fondues de chocolate, a fragrância dos vinhos que custavam, no mínimo, R$ 120, e ouviria o tilintar dos cubos de gelo em copos cujas doses milimétricas de uísque eram contabilizadas em R$ 45. Havia também outros tipos de comida, com direito a hambúrger e cerveja, para pessoas menos “descoladas”.

Entre uma música de Bach e outra que tocava antes da apresentação, só “descolados” circulavam ali. O elenco era vasto —e profundo: do pré-candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) ao deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), passando por Leda e Duda Nagle (mãe, jornalista, e filho, ator), a deputada federal Bia Kicis (PL- DF), o ator Juliano Cazarré, Marco Antonio Costa (ex-Jovem Pan), André Marinho (atual Jovem Pan), Caio Coppola (comentarista na CNN Brasil), o cientista político e ex-deputado Heni Ozi Cukier, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (PL), Adolfo Sachsida (ex-ministro de Bolsonaro), até a influencer Lara Brenner , Gabriel Kanner (herdeiro da Riachuelo) e sua esposa, Marthina Brandt (miss Brasil 2015), ali estava a nostalgia do gulag transmutada no radical chique de direita (muito obrigado, Tom Wolfe).

E não eram apenas as celebridades deste Brasil paralelo. O economista Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha, também compareceu; Maria Homem, psicanalista e professora da FAAP, que cobra R$ 1.700 por sessão avulsa de terapia (via Skype), fez graça com Schopenhauer quando a palestra finalmente terminou.

“Finalmente” é um termo exato porque o show —foi um show mesmo, pois Peterson se tornou uma espécie de Taylor Swift do intelecto— durou quase duas horas. Quem prestou atenção no conteúdo ficou com torcicolo. Afinal, o tema não era nada leve: sacrifício, Caim e Abel, Abraão e Isaac. Enfim, o velho e conhecido problema do mal, o tema que obceca —já podemos chamá-lo assim?— “Jordan”.

Portanto, “Jordan” começou com um sacrifício a ser imposto ao seu público tão querido: a abertura foi uma série de quatro músicas cantadas por um aluno seu, Victor Swift (nada a ver com Taylor, graças a Deus), o qual, com seu violão, simplesmente assassinou “Hallelujah”, de Leonard Cohen (é melhor nem comentar as outras três).

Antes de Jordan entrar, veio sua esposa, “Tammy” (que o chama de “Dr. Peterson”), aplaudida efusivamente —afinal de contas, não é qualquer pessoa que consegue escapar de um câncer nos rins.

E eis que ele surgiu. Sozinho no palco, vestindo um terno que parecia figurino do longa “Coringa” (2019), “Jordan” foi celebrado como o sacerdote que todos esperavam. O show foi todo dele: por quase uma hora e meia, houve um passeio pelo “significado político” da história bíblica de Caim e Abel, mas sobretudo pelo fato de que “Deus é o juiz do sacrifício”, sem que o bom doutor se importasse com a definição exata do termo “sacrifício” (a violência sagrada que molda o comportamento humano).

Na verdade, Abel não pratica rituais violentos para Deus, ao contrário do seu irmão homicida, e sim oferendas pacíficas (agradecemos esta distinção ao professor doutor Maurício Righi), e isto também foi tratado de forma displicente. Mas quem está preocupado com rigor nessas horas, não é mesmo?

No mundo do Brasil paralelo, o que importa é falar que “o maior descendente de Caim nos tempos atuais é o marxismo” —uma afirmação recebida pelo público com tamanha energia nos aplausos que era de se perguntar se o próximo sacrifício a ser feito pelo filho maldito de Adão e Eva não aconteceria na esquina ali ao lado.

É claro que aconteceria. Mas antes disso, o “gran finale”: apertar as mãos de Jordan e conversar com ele por alguns minutos. Havia, porém, uma condição (feita sem o conhecimento prévio da produção): pagar US$ 250 (cerca de R$ 1.380).

Quem se habilitou? Várias pessoas, a julgar por outra fila longuíssima formada, desta vez com os radicais chiques da vez, entre eles Nikolas Ferreira —que não conseguia andar, tamanho o assédio das fãs, e depois escreveu no seu Instagram, como legenda de sua foto com a estrela da noite: “Pick your damn sacrifice” (“escolha o seu maldito sacrifício”)— e Pablo Marçal, cuja forma de se aproximar do palestrante foi astuta: deu a impressão de que Jordan o conhecia há tempos; os dois se olharam como amigos, um apertou a mão do outro e até se abraçaram.

Este gesto foi a prova de que a palestra de Jordan Peterson simbolizou uma mudança no eixo de poder político do país. Os Bolsonaros não estavam mais no topo da cadeia alimentar da direita; Nikolas e Pablo eram, desta vez, a carne fresca.

E a imprensa, como sempre, desprezou o evento. Uma jornalista que estava ali chegou a relatá-lo como se fosse uma “reunião de reacionários”. Na realidade, era o futuro, o mesmo futuro caótico eleito em 2018, suspenso durante a pandemia e que agora, amadurecido e devidamente financiado, deixará de ser o Brasil paralelo e será o Brasil oficial por meio de uma única regra: o sacrifício em uma roupagem “descolada”, pleno da “nostalgia do gulag”, criando assim uma terceira etapa na carnificina da nossa violência sagrada —a síndrome de Caim.

Como reflexo disso, o bom doutor afirmou à produção oficial do evento que não daria entrevistas. E não deu, exceto para um veículo de imprensa: a Jovem Pan, representada pelo humorista André Marinho.

A razão dessa proeza é que Marinho é amigo de Robert F. Kennedy Jr., o candidato independente à Presidência dos EUA e aliado de Jordan em causas mais do que polêmicas (guerra contra a cultura woke, oposição a vacinas). É óbvio que um jornalista qualquer jamais teria chance de trocar uma palavra com o palestrante. Afinal, quem pode competir contra Camelot?

Ninguém, especialmente se levar em conta que, na saída do evento, por volta das 22h30, três amigos, que ainda digeriam os insights sobre Caim e Abel, foram em direção ao metrô mais próximo, a estação Barra Funda, repleta de pessoas deitadas no chão e moradores de rua pedindo dinheiro.

Enquanto esperavam um táxi, um vendedor ambulante, chamado Douglas, se aproximou e perguntou se eles queriam comprar um kit “dieta balanceada” —na verdade, uma modesta caixa de brigadeiros caseiros (R$ 10). Desconfiados, recusaram a oferta. Mas Douglas foi insistente e soltou outra questão: “Quem estava ali dando show?”. Não foi show, foi uma palestra, responderam. “De quem?” Jordan Peterson. “Jordan Peterson? Puxa, tão brincando? Sou fã dele! Li todos os livros.”

O vendedor sacou o celular gasto pelo uso e mostrou, na tela, que de fato tinha a obra completa do bom doutor. “Eu aplico as 12 regras da vida dele todos os dias!” Sorridente, Douglas se despediu. Os três amigos estavam completamente surpresos. Era o Brasil verdadeiro a se sacrificar pelo Brasil paralelo (e, quiçá, oficial) que pagou uma fortuna para apertar a mão de um mero homem.

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